Revendedora de empresa de cosméticos não tem reconhecido vínculo de emprego

Serviço era executado sem pessoalidade e subordinação.

A Justiça do Trabalho mineira afastou o vínculo de emprego pretendido por uma mulher que, por aproximadamente 12 anos (2008 a 2020), prestou serviços a uma fabricante de cosméticos como consultora/orientadora (ou líder de negócios).

A sentença é da juíza Paula Borlido Haddad, titular da 1ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte. Ao examinar as provas produzidas no processo, a magistrada constatou que a mulher atuava como profissional autônoma, desenvolvendo suas atividades sem a presença dos pressupostos da relação de emprego, sobretudo a subordinação jurídica.

“Para a caracterização do vínculo de emprego, é necessária a presença dos pressupostos previstos no artigo 3º da CLT, a demonstrar que os serviços foram prestados com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação. Na relação de trabalho autônomo, a subordinação mostra-se ausente, podendo não se configurar também a pessoalidade”, destacou a juíza.

A decisão se baseou, inclusive, em contratos apresentados pela própria trabalhadora, os quais, nas palavras da julgadora, “já evidenciavam que a prestação de serviços teria se dado sem subordinação e sem pessoalidade”.

Como observou a juíza, o contrato padrão de “Consultora Orientadora” tinha por objeto a prestação de serviços de identificação de possíveis candidatas à condição de consultoras, assim como a atuação na motivação comercial dessas consultoras, por meio do incentivo à participação em “eventos” (tais como lançamentos de produtos, showrooms). O auxílio na passagem de pedidos e a prestação de suporte por parte das consultoras também foram registrados como objeto do contrato, tudo a ser realizado “de forma livre, independente e organizada”. Constou ainda do contrato que a remuneração da prestadora de serviços se daria conforme a quantidade de consultoras ativas existentes em seu grupo e a faixa de pontos obtidos por essas consultoras, em um determinado ciclo de vendas.

Para a magistrada, o contrato padrão de “líder de negócios”, também apresentado no processo, confirmou a autonomia na prestação de serviços da trabalhadora. Nos termos do contrato, o líder tem por objetivo o crescimento da quantidade de consultores(as) e a motivação comercial destes por meio de um grupo. A remuneração do líder se daria de acordo com os resultados financeiros desse grupo. Chamou a atenção da juíza o fato de constar expressamente do contrato que o líder “terá total autonomia para gerir e operar seu negócio, sem ingerência da empresa, com liberdade para definir os dias e horários em que irá se dedicar, bem como a forma como prefere trabalhar” e que “poderá, inclusive, contratar terceiros para o desempenho das atividades”.

O depoimento da própria reclamante reforçou a convicção da julgadora sobre a inexistência do vínculo de emprego. Pelas declarações da profissional, a juíza constatou que ela atuava sem subordinação jurídica, pois não havia horário de trabalho estipulado nem qualquer tipo de controle, sem obrigatoriedade de comparecimento à empresa. “Nota-se que a própria reclamante declarou que trabalhava em casa, que não tinha um horário certo para trabalhar, podendo ser de manhã, de tarde e de noite, e que as únicas maneiras de a gerente saber se ela tinha parado para almoçar era se ela estivesse off-line ou se alguém ligasse. A autora também declarou que, caso ela ficasse doente ou não pudesse trabalhar por algum motivo, não tinha que apresentar atestado médico”, destacou a magistrada.

Na decisão, ainda foi pontuado que a trabalhadora tinha liberdade para angariar novos clientes, que ela assumia o risco da compra de produtos para clientes, assim como os custos da atividade, o que, conforme pontuado, revela a alteridade típica dos serviços prestados de forma autônoma.

Prova testemunhal – O depoimento da testemunha da empresa foi considerado “firme e convincente” pela juíza para confirmar a inexistência de subordinação jurídica e de pessoalidade. A testemunha era consultora e passou a atuar como líder. Afirmou que suas atividades como líder consistiam em fazer cadastro de novas consultoras e orientar 308 consultoras. Não fiscalizava o horário de trabalho delas e a orientação ocorria por WhatsApp, ligações e e-mails. Se por algum motivo não pudesse ir trabalhar, apenas avisava a empresa. Não precisava apresentar atestado médico em caso de doença, não podia descadastrar consultoras do sistema e, conforme relatou, era ela mesma quem organizava a sua rotina e horário de trabalho, além de arcar com os custos do serviço. Disse que essas condições de trabalho se estendiam a todas as líderes e acrescentou que não enviava fotos do que estava fazendo, não precisava elaborar relatório de atividades e que a participação em reuniões não era obrigatória. Contou que não havia punição caso não atingisse metas e que podia pedir auxílio a outras pessoas, no caso, ao marido, que sempre a auxiliava nas atividades. Disse ainda que comercializava produtos de outras duas marcas e que, inclusive, podia fazer parceria com líderes de marca concorrente para trocar cadastro. Foi categórica ao afirmar que não recebia nenhuma ordem ou comando de alguém da empresa e que comprava o kit líder, que servia para demonstração, mas não havia obrigação de compra.

As declarações da testemunha da autora, por outro lado, não convenceram o juízo, por divergirem das afirmações da própria profissional. A testemunha disse que precisava apresentar atestado médico caso não pudesse ir trabalhar, enquanto a reclamante disse que, se ficasse doente ou não pudesse ir trabalhar, “apenas avisava”. A testemunha ainda declarou que não havia flexibilidade de horário e tinha que trabalhar de 8h às 19h, enquanto a reclamante afirmou que “não tinha um horário certo para trabalhar, que podia ser de manhã, à tarde ou à noite”.

Prova documental e inquérito civil instaurado pelo MPT – Documentos apresentados reforçaram a conclusão da juíza de que a prestação de serviços se deu de forma autônoma. Continham “sugestões” de atividades a serem desenvolvidas pelas consultoras orientadoras e “sugestões” de como deveriam se portar para a condução do próprio negócio.

Veio ao processo relatório de arquivamento do inquérito civil de nº: 004294.2013.02.000/6, instaurado pelo MPT. Alguns trechos desse relatório chamaram a atenção da juíza e foram citados na sentença, contribuindo para o afastamento do vínculo de emprego pretendido. No relatório, datado de 25/5/2015, o MPT entendeu desnecessário o prosseguimento do inquérito civil, por entender ter sido comprovado “que as consultoras orientadoras gerem seu próprio método de trabalho, escolhendo como, quando e onde irão prestar seus serviços. De outra sorte, não restou comprovada a necessidade dessas figuras revendedoras para que a denunciada exerça sua atividade econômica, pois conta com outros métodos de venda”. (…)                    

“Por fim, ressalto que, dos depoimentos das consultoras, bem como do material acostado ao presente inquérito, não restou comprovada a subordinação da Requerida e seus prepostos para com essas CO. Além disso, todas se mostraram cientes de que a contraprestação que recebem é em decorrência de seu próprio esforço, vez que quanto mais se dedicam à atividade, mais são remuneradas.  Escolhem  livremente  se  dedicarem  mais  ou menos à consultoria e orientação e, consequentemente, serem remunerada mais ou menos. Elas próprias alegam que não querem ter vínculo empregatício com a Requerida, para poderem gerenciar seu tempo livremente”, assim foi registrado na conclusão do inquérito. 

Ausência de subordinação jurídica – Conversas de WhatsApp e e-mails apresentados pela trabalhadora não foram considerados aptos para demonstrar a subordinação na relação de trabalho, não só em razão das circunstâncias apuradas pelas demais provas, mas também por sequer fazerem referência ao nome da consultora.

Sobre a chamada “subordinação estrutural”, a juíza pontuou que: “(…) não há como se acolher a tese de subordinação estrutural, pois, a partir de tal conceito, praticamente todos os casos submetidos à Justiça do Trabalho estariam sujeitos ao reconhecimento do vínculo empregatício, sem necessidade de se produzir provas ou se perquirir os requisitos da relação de emprego. Com efeito, numa organização capitalista, as tarefas econômicas estão conectadas e se agregam umas com as outras, o que torna imprescindível se aferir a fundo o preenchimento ou não dos requisitos do vínculo de emprego, como na hipótese dos autos”.

A magistrada ainda ponderou que as regras mínimas de organização e estruturação da atividade existem em qualquer tipo de trabalho, autônomo ou não. Ressaltou que as recomendações de cunho técnico e de atendimento emitidas pela empresa não se confundem com a subordinação jurídica indispensável à relação de emprego, nem denotam a ingerência da empresa sobre as atividades da autora, tratando-se apenas de orientações e sugestões para o aperfeiçoamento do serviço.

Pode-se dizer que o critério da subordinação jurídica ou da dependência hierárquica é o que tem logrado maior aceitação para caracterização da relação empregatícia. Vincula-se ao poder diretivo do empregador e ao estado de sujeição do empregado, destacando o dever de obediência e de fidelidade do empregado ao seu empregador, situação que indubitavelmente não ocorre no caso em apreço”, enfatizou a juíza. Para a julgadora, existiu entre as partes contrato de prestação de serviços atípico, o qual denota a inexistência de subordinação e de pessoalidade, afastando de forma clara os elementos caracterizadores da relação empregatícia. “De fato, o conjunto probatório dos autos corresponde à prestação de serviços autônomos pela reclamante”, concluiu. Em razão da ausência dos pressupostos fáticos e jurídicos estabelecidos nos artigos 2º e 3º da CLT, julgou improcedente o pedido de reconhecimento da relação de emprego, bem como todos os demais pedidos correlatos. Em grau de recurso, os julgadores da Terceira Turma TRT mineiro mantiveram a sentença nesse aspecto.

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